domingo, 11 de março de 2012

Santa Surdez

Lembro que desde a minha infância em Sampa existia uma lei que proibia o uso de aparelhos "sonoros" nos coletivos. Nem era difícil obedecer, porque só havia o inofensivo radinho de pilha, colado aos ouvidos dos torcedores de futebol mais fanáticos.
Algumas décadas depois, a mesma lei continua em vigor. Mas o advento de novas tecnologias e a falta generalizada de semancol fez com que hoje eu ande com um par de protetores auriculares na bolsa. Aquelas rolhas de mergulho mesmo! Cheguei a invejar (olha que viagem...) um rapaz surdo que entrou pela porta de frente tentando vender aos passageiros o alfabeto LIBRAS. Enquanto ele sorria, nós outros ouvíamos o 'melô da tarraxinha'  no último volume, oferecido pelo simpático e gente boa motorista DJ. Sim, esse cara legal bem intencionado e sangue bom leva ao desespero auditivo centenas de pessoas que têm o privilégio de embarcar na sua tenda eletrônica. Isso às 08h00 e pagando para ouvir o hit que ele elege como couvert artístico da hora. Para sorte dos passageiros ele é bem eclético, varia o repertório (de gosto discutível...), mas detona sem misericórdia nossos ouvidos a cada manhã.
Como cansei de sofrer no buzum, resolvi meu problema com os tampões, aos quais recorro sem cerimônia. Eles me permitem chegar ao trabalho ainda de bem coma vida. Bem... isso até a hora em que a DJ dos serviços gerais começa a limpar as salas, com seu possante celular no viva-voz no volume máximo. Com aquela cara de "causei" ela desfila com os fones de ouvido pendurados no pescoço, feito estetoscópio, enquanto intoxica com seu repertório clientes internos e externos, que pasmam com a cena bizarra. Detalhe: ela canta junto (e muuuuito mal). Infelizmente no trabalho não posso usar as rolhas auditivas, porque preciso interagir  com as pessoas.
E aqui fica uma reflexão sobre essa falta de noção de liberdade e respeito, que dá para resumir em má educação mesmo. A velha e boa educação doméstica mínima ensinava que meu direito acabava quando começava o do vizinho.
Tenho certeza de que tanto o DJ motorista quanto a adorável auxiliar de serviços gerais não entenderiam que não temos obrigação de compartilhar à força a vontade de eles ouvirem o que consideram música, muito menos seus repertórios, por melhor que fossem.
Enquanto isso, rosqueio meus protetores cor de laranja, com os quais ouço o som dos meus pensamentos, numa santa surdez.

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